quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Seção IV - Bens culturais imateriais da zona rural de Três Marias

Ao longo da realização do IPAC, a equipe responsável pelo setor de patrimônio da Prefeitura de Três Marias foi percebendo a importância de inventariar os bens culturais imateriais existentes no município. Esta percepção, no entanto, somente ganhou corpo nos dois últimos anos de realização do cronograma do inventário, quando os trabalhos já estavam adiantados e restava somente a seção 4 para ser inventariada.

Por este motivo, teremos fichas de bens imateriais somente nesta seção que representa a vida rural do município de Três Marias. Sobre esta área de inventário, as pesquisas apontam que historicamente a economia regional foi pautada pela pecuária de corte e pela agricultura de subsistência. Composta majoritariamente por grandes fazendas, a imigração rural que aconteceu em todo o Brasil em meados do século XX foi ainda mais forte na região que contou com os adventos da construção da Barragem de Três Marias, da rodovia BR 040 e da expansão da monocultura do eucalipto.

Neste sentido, os bens culturais imateriais mostram o retrato de uma região que perdeu muitas de suas tradições e de sua própria população. Ainda assim, foi possível identificar um patrimônio imaterial bastante significativo sendo produzidas nove fichas de inventário. Entre estes bens inventariados, cinco foram identificados como “modos de fazer”, dois como “celebrações”, um como “manifestação cultural” e um na categoria de “outros”.

Os bens inventariados como “modos de fazer” revelam um mundo rural que buscava autonomia através de uma produção policultural, na qual os fazendeiros, sitiantes e agregados produziam uma variedade grande de alimentos e artefatos de uso doméstico para suprir seu próprio consumo. Tratando das produções de farinha de mandioca, polvilho, rapadura, cestarias de taquara e bambu, do crochê e do bordado, as fichas projetam importantes pessoas que mantiveram a cultura tradicional popular viva nas últimas décadas, tais como: Dona Nilza (região do Ribeirão do Boi/Extrema), Dona Maria Helena (povoado de Cabeceira das Pedras), seu Valdé (região do Ribeirão do Boi/Extrema), seu Antônio Macedo (Povoado das Pedras), entre outros.

As fichas relativas às “celebrações” identificaram o tradicional “Terço de São Sebastião” realizado na Fazendo do Lajeado como um bem de grande destaque e em plena efervescência. 

Iniciada a partir de uma promessa feita a seis décadas, esta celebração pode ser vista como uma das mais importantes tradições da zona rural de Três Marias, atraindo dezenas de pessoas todos os anos no mês de janeiro.

Também inventariada como celebração, o bem designado como “Festa de Noivado” era uma importante festividade que marcava o encontro e a celebração ritualística da formação de famílias sertanejas da região. 

Esta celebração não é mais praticada e para ser descrita foi necessário coletar diversos depoimentos que evidenciaram que a “Festa de Noivado” não era uma festividade uniforme, ou melhor, que ela poderia sofrer modificações de acordo com o hábito de cada família.

Passemos agora para a manifestação cultural que ficou conhecida como “mutirão de capina de roça”. Este bem pode ser considerado como uma expressão significativa da solidariedade existente entre os povos sertanejos que se uniam para vencer as dificuldades impostas pelos entraves naturais. Vale indicar que, muitas das vezes, esses mutirões eram acompanhados de festas, cantos e outras expressões culturais que conferiam ao encontro de trabalhadores um caráter ritualístico.

Durante o inventário, ficou evidente que os antigos moradores da região se lembram da tradição de mutirões de capina nas roças de milho que eram organizados, geralmente, no período das chuvas (novembro a fevereiro), por lavradores que trocavam entre si dias de trabalho formando grupos de dezenas de lavradores que faziam rodízio pelas roças da região.

Estes mutirões começavam por volta de 6:30 da manhã com um café reforçado que era oferecido pelo dono da roça. Às 9:30, a turma parava para almoçar, geralmente com um cardápio formado por arroz, feijão, abóbora e frango, que eram trazidos em uma grande gamela e servidos pelos próprios trabalhadores em pratos ou cuias. Ao meio-dia, a turma parava mais uma vez para um café com biscoito e, às 14:00, era servida a "janta", com cardápio similar ao do almoço. O dia de trabalho terminava quando acabava o sol ou se o grupo terminava seu serviço. A cachaça também era oferecida pelo roceiro à turma de trabalhadores. Em dias considerados especiais, o dono da roça fazia uma festa para a turma de lavradores. Essa festa era precedida pelo ritual de retirada de um pé de milho e uma procissão que seguia da roça até a casa cantando cantigas tradicionais. A festa era aberta a todos, homens e mulheres, entravam pela noite adentro. Geralmente, as casas eram enfeitadas para receber os trabalhadores, sendo comum o enfeite de árvores ou arbustos com biscoitos. Atualmente, estes mutirões não são mais praticados nas roças da região, se tornando uma tradição que merece ser pesquisada e difundida para as novas gerações através dos trabalhos desenvolvidos para a preservação do patrimônio cultural.

O último bem inserido na categoria de patrimônio imaterial refere-se à trajetória de vida e aos saberes da senhora Zenaide Barbosa. Na realidade, durante o inventário, foi identificado que Dona Zenaide era uma espécie de guardiã de diversos saberes e fazeres tradicionais que optou-se por desenvolver uma ficha específica para ela. Nascida em 1932, nas margens do Ribeirão do Boi, Dona Zenaide perdeu muito cedo a sua mãe e viveu a maior parte do tempo como agregada da família de Seu Apulcro Tameirão, na Fazenda do Salto do Ribeirão do Boi. Além de ser uma testemunha da história local com ótima habilidade para lembrar e contar fatos do passado, Dona Zenaide aprendeu diversos saberes e fazeres que faziam dela uma sertaneja muito especial, daquelas que, hoje, encontramos poucas no sertão. Entre estes saberes, identificamos os seguintes: produção de diversos tipos de queijos, temperos, incluído o processamento do açafrão e dos corantes; produção de diversos tipos de comidas caseiras (linguiça, galinha, carne de lata, outros), de de farinha de milho e de mandioca; produção de rapadura; extração e utilização da tabatinga para diversos fins; feitura de panelinhas de barro; confecção de peneiras de taquara e balaios; amarração de vassouras artesanais; produção de quitandas diversas (biscoitos, cuba, mondongo, outros);produção de sabão de quadra; costura e colchas de retalho; produção de chás e remédios naturais; produzir réstias de alho e cebola, plantio e cuidado de hortas e galinheiro.

Falecida em 2014, finalizamos este inventário rendendo homenagem a Dona Zenaide que representou de maneira bastante completa a força e sabedoria das mulheres sertanejas de Três Marias.










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