segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Seção II - Acervo religioso da Capela de Nossa Senhora das Mercês

O primeiro grupo refere-se especificamente aos bens ligados à cultura religiosa católica que é representada pela Capela de Nossa Senhora das Mercês e pelo seu acervo de bens móveis.

Tombada como patrimônio cultural municipal em 2010, a Capela de Nossa Senhora das Mercês é um bem cultural que concentra interesse histórico, estilístico e religioso na sua materialidade, além de servir como local de guarda de um importante acervo de imagens, móveis e outras peças sacras. Mesmo com esta importância, a história da Capela ainda não foi completamente desvendada, sendo objeto de interesse de diversos pesquisadores que ainda vão precisar garimpar documentos em arquivos de Três Marias, Felixlândia, Curvelo, Corinto, Diamantina e Belo Horizonte para esclarecer melhor a trajetória da Capela desde sua criação até os dias de hoje.

Na realidade, a tradição oral indica que a construção da capela estaria ligada ao falecimento repentino do diamantinense José Pereira da Rocha, que se encontrava de passagem pela região do atual Distrito, tendo sido enterrado em Andrequicé. O irmão do falecido, Pedro Pereira da Rocha, era padre e para homenagear o irmão, teria mandado erguer uma capela no local onde ele fora enterrado. A partir de então, os filhos de José Pereira, para ficarem perto do corpo do pai, acabaram se estabelecendo em fazendas próximas à região, lá desenvolvendo grandes plantações e criação de gado.

Reza a tradição que a referida capela corresponderia a atual Capela de Nossa Senhora das Mercês e que a sua construção teria se dado em 1725, posto que nas suas proximidades teria sido encontrado um pedaço de tronco de aroeira onde estaria gravada a referida data. No entanto, não há nenhum documento que demonstre a veracidade da história regularmente narrada pelos moradores de Andrequicé e tampouco que comprove a data exata da edificação da atual capela.

Existe, todavia, algumas evidências que apontam que a construção da Capela de Nossa Senhora das Mercês seria, na realidade, posterior ao primeiro quartel do século XVIII. Uma destas evidências é a própria forma como o templo foi implantado no plano urbano de Andrequicé, ou melhor, a capela se encontra em um plano inferior ao do casario, com sua parte traseira voltada para as casas, remontando uma configuração espacial que não corresponderia ao padrão utilizado nas antigas vilas e vilarejos de Minas Gerais e que poderia ser interpretada como um indício que a construção da capela não precedeu à construção das edificações mais antigas do distrito.

Nos levantamentos feitos por ocasião da elaboração do Dossiê de Tombamento da Capela, vê-se que o templo passou por inúmeras transformações ao longo do século XX. Dentre as principais modificações observadas pelos moradores mais antigos do Distrito, destacam-se: a eliminação do gradil frontal, feito em madeira, do “pregoador” (SIC) de leilão (um quadrado alto que ficava ao lado das barraquinhas) e da torre, construída em 1946. Esta última teria caído porque os porcos, criados pelos moradores do Distrito, cavaram buracos na sua estrutura, levando a sua deterioração. O sino da igreja foi retirado na ocasião da queda da torre. O piso da igreja também teria sido substituído, passando do tijolo para cerâmica. Esta última também substituiu o antigo piso de madeira que revestia o altar. Acreditam os moradores que esta transformação do piso tenha ocorrido por volta dos anos de 1970. Pela coincidência das datas, concluímos que se trata da reforma levada a cabo pelo padre Geraldo Vieira Gusmão.

Cabe indicar que, além da importância histórica e estilística, a Capela é um templo com intensa movimentação religiosa, que abriga entre outras atividades a festa em devoção a Nossa Senhora das Mercês celebrada todos os anos no mês de setembro.

Desenvolvido de maneira concomitante com o inventário da Capela, em 2004, também foram produzidas fichas sobre parte do acervo de bens móveis da Capela. Este acervo é singular e concentra as peças mais antigas da imaginária e do mobiliário do município, sendo eles a Imagem de Nossa Senhora das Mercês, a imagem de São Sebastião, o Divino Espírito Santo e a antiga “mesa de encostar”. Ainda não foi possível datar todas estas peças, mas sua confecção em madeira e seus traços estilísticos revelam que elas foram produzidas em diferentes momentos históricos, sendo que, provavelmente, a mesa de encostar seria o mais antigo deles. Vale indicar que este móvel apresenta uma talha erudita e discreta que permitem que a peça seja identificada  como do estilo Dom José I, que reinou em Portugal na segunda metade do século XVIII.

Já a imagem de Nossa Senhora das Mercês desponta como a peça de maior valor simbólico religioso do acervo. Imagem de roca ou de vestir, suas características técnicas e estilísticas nos levam a acreditar que esta escultura foi produzida por um artista que transitava entre a cultura popular e erudita. Colocada no principal posto do altar-mor da capela, além de ficar exposta permanentemente no templo, a imagem acompanha as procissões na Festa dedicada a Nossa Senhora das Mercês e exerce uma função social e simbólica na comunidade que a projeta como o bem cultural móvel de maior apreço para os habitantes de Andrequicé.

A imagem de São Sebastião, por sua vez, apresenta uma composição que nos possibilita interpretar que o artista responsável pela obra tinha conhecimentos técnicos avançados e eruditos, uma vez que ele se mostrou capaz de produzir todo o corpo da imagem, representado por uma figura masculina semidesnuda, em apenas um bloco de madeira inteiriço. Após a restauração em 2002, revelou-se a rara presença de um manto azul que envolve o ventre da imagem. Documentos acessados durante o inventário,  mostram que esta é uma característica da pintura original da imagem e que, como antes da restauração, a peça estava encoberta por duas repinturas na qual o perizônio, nome técnico dado a este manto ventral, era coberto pela cor vermelha, seguindo um padrão bastante recorrente nas representações de São Sebastião. Relatos coletados durante o inventário apontam que esta descoberta gerou certa polêmica na comunidade quando a peça retornou do processo de restauração. Alguns chegaram até mesmo a questionar se esta era a peça originalmente encontrada em Andrequicé. Outros defendiam que, por motivos tradicionais, o perizônio deveria retornar à cor vermelha. Após os debates, optou-se por manter as características originais do manto azul e a imagem de São Sebastião voltou a ocupar o seu merecido lugar na capela e no universo cultural da população local.


A imagem do Divino Espírito Santo é outro bem inserido no acervo inventariado da Capela de Nossa Senhora das Mercês. Por apresentar traços escultóricos mais simplificados, a peça poderia ser reconhecida como de feitura de cunho “popular”, remetendo à imagem do Divino Espírito Santo através de uma pomba de asas abertas dentro de um resplendor. Objeto de grande estima comunitária, após a restauração em 2001 ficou provado que, ao contrário do que muitos pensavam, a peça não é de gesso, mas de madeira e metal. Vale indicar que na região existem diversas menções à devoção ao Espírito Santo: nome da praça no qual se encontra a Capela de Nossa Senhora das Mercês e nome de uma antiga fazenda e posto fiscal colonial situada nas proximidades de Andrequicé. Estas referências nos fornecem indícios que a existência desta imagem pode estar associada a uma tradição antiga de devoção ao Espírito Santo.






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