O
primeiro grupo refere-se especificamente aos bens ligados à cultura religiosa
católica que é representada pela Capela de Nossa Senhora das Mercês e pelo seu
acervo de bens móveis.
Tombada como patrimônio cultural municipal em 2010, a Capela de Nossa
Senhora das Mercês é um bem cultural que concentra interesse histórico,
estilístico e religioso na sua materialidade, além de servir como local de
guarda de um importante acervo de imagens, móveis e outras peças sacras. Mesmo
com esta importância, a história da Capela ainda não foi completamente
desvendada, sendo objeto de interesse de diversos pesquisadores que ainda vão
precisar garimpar documentos em arquivos de Três Marias, Felixlândia, Curvelo,
Corinto, Diamantina e Belo Horizonte para esclarecer melhor a trajetória da
Capela desde sua criação até os dias de hoje.
Na realidade, a tradição oral indica que a construção da capela estaria
ligada ao falecimento repentino do diamantinense José Pereira da Rocha, que se
encontrava de passagem pela região do atual Distrito, tendo sido enterrado em
Andrequicé. O irmão do falecido, Pedro Pereira da Rocha, era padre e para
homenagear o irmão, teria mandado erguer uma capela no local onde ele fora
enterrado. A partir de então, os filhos de José Pereira, para ficarem perto do
corpo do pai, acabaram se estabelecendo em fazendas próximas à região, lá
desenvolvendo grandes plantações e criação de gado.
Reza a tradição que a referida capela corresponderia a atual Capela de
Nossa Senhora das Mercês e que a sua construção teria se dado em 1725, posto
que nas suas proximidades teria sido encontrado um pedaço de tronco de aroeira
onde estaria gravada a referida data. No entanto, não há nenhum documento que
demonstre a veracidade da história regularmente narrada pelos moradores de
Andrequicé e tampouco que comprove a data exata da edificação da atual capela.
Existe, todavia, algumas evidências que apontam que a construção da
Capela de Nossa Senhora das Mercês seria, na realidade, posterior ao primeiro
quartel do século XVIII. Uma destas evidências é a própria forma como o templo
foi implantado no plano urbano de Andrequicé, ou melhor, a capela se encontra
em um plano inferior ao do casario, com sua parte traseira voltada para as
casas, remontando uma configuração espacial que não corresponderia ao padrão
utilizado nas antigas vilas e vilarejos de Minas Gerais e que poderia ser
interpretada como um indício que a construção da capela não precedeu à
construção das edificações mais antigas do distrito.
Nos levantamentos feitos por ocasião da elaboração do Dossiê de
Tombamento da Capela, vê-se que o templo passou por inúmeras transformações ao
longo do século XX. Dentre as principais modificações observadas pelos
moradores mais antigos do Distrito, destacam-se: a eliminação do gradil
frontal, feito em madeira, do “pregoador” (SIC) de leilão (um quadrado alto que
ficava ao lado das barraquinhas) e da torre, construída em 1946. Esta última
teria caído porque os porcos, criados pelos moradores do Distrito, cavaram
buracos na sua estrutura, levando a sua deterioração. O sino da igreja foi retirado
na ocasião da queda da torre. O piso da igreja também teria sido substituído,
passando do tijolo para cerâmica. Esta última também substituiu o antigo piso
de madeira que revestia o altar. Acreditam os moradores que esta transformação
do piso tenha ocorrido por volta dos anos de 1970. Pela coincidência das datas,
concluímos que se trata da reforma levada a cabo pelo padre Geraldo Vieira
Gusmão.
Cabe indicar que, além da importância histórica e estilística, a Capela
é um templo com intensa movimentação religiosa, que abriga entre outras
atividades a festa em devoção a Nossa Senhora das Mercês celebrada todos os
anos no mês de setembro.
Desenvolvido de maneira concomitante com o inventário da Capela, em
2004, também foram produzidas fichas sobre parte do acervo de bens móveis da
Capela. Este acervo é singular e concentra as peças mais antigas da imaginária
e do mobiliário do município, sendo eles a Imagem de Nossa Senhora das Mercês,
a imagem de São Sebastião, o Divino Espírito Santo e a antiga “mesa de encostar”.
Ainda não foi possível datar todas estas peças, mas sua confecção em madeira e
seus traços estilísticos revelam que elas foram produzidas em diferentes
momentos históricos, sendo que, provavelmente, a mesa de encostar seria o mais
antigo deles. Vale indicar que este móvel apresenta uma talha erudita e
discreta que permitem que a peça seja identificada como do estilo Dom José I, que reinou em
Portugal na segunda metade do século XVIII.
Já a imagem de Nossa Senhora das Mercês desponta
como a peça de maior valor simbólico religioso do acervo. Imagem de roca ou de
vestir, suas características técnicas e estilísticas nos levam a acreditar que
esta escultura foi produzida por um artista que transitava entre a cultura
popular e erudita. Colocada no principal posto do altar-mor da capela, além de
ficar exposta permanentemente no templo, a imagem acompanha as procissões na
Festa dedicada a Nossa Senhora das Mercês e exerce uma função social e
simbólica na comunidade que a projeta como o bem cultural móvel de maior apreço
para os habitantes de Andrequicé.
A imagem de São Sebastião, por sua vez, apresenta
uma composição que nos possibilita interpretar que o artista responsável pela
obra tinha conhecimentos técnicos avançados e eruditos, uma vez que ele se mostrou
capaz de produzir todo o corpo da imagem, representado por uma figura masculina
semidesnuda, em apenas um bloco de madeira inteiriço. Após a restauração em 2002, revelou-se a rara presença de um
manto azul que envolve o ventre da imagem. Documentos acessados durante o
inventário, mostram que esta é uma
característica da pintura original da imagem e que, como antes da restauração,
a peça estava encoberta por duas repinturas na qual o perizônio, nome técnico
dado a este manto ventral, era coberto pela cor vermelha, seguindo um padrão
bastante recorrente nas representações de São Sebastião. Relatos coletados
durante o inventário apontam que esta descoberta gerou certa polêmica na
comunidade quando a peça retornou do processo de restauração. Alguns chegaram
até mesmo a questionar se esta era a peça originalmente encontrada em
Andrequicé. Outros defendiam que, por motivos tradicionais, o perizônio deveria
retornar à cor vermelha. Após os debates, optou-se por manter as
características originais do manto azul e a imagem de São Sebastião voltou a
ocupar o seu merecido lugar na capela e no universo cultural da população
local.
A imagem do Divino Espírito Santo é outro bem
inserido no acervo inventariado da Capela de Nossa Senhora das Mercês. Por apresentar traços
escultóricos mais simplificados, a peça poderia ser reconhecida como de feitura
de cunho “popular”, remetendo à imagem do Divino Espírito Santo através de uma
pomba de asas abertas dentro de um resplendor. Objeto de grande estima
comunitária, após a restauração em 2001 ficou provado que, ao contrário do que
muitos pensavam, a peça não é de gesso, mas de madeira e metal. Vale indicar
que na região existem diversas menções à devoção ao Espírito Santo: nome da
praça no qual se encontra a Capela de Nossa Senhora das Mercês e nome de uma
antiga fazenda e posto fiscal colonial situada nas proximidades de Andrequicé.
Estas referências nos fornecem indícios que a existência desta imagem pode
estar associada a uma tradição antiga de devoção ao Espírito Santo.
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